Vidro e Ferro (1999)

Vidro e Ferro

CONSTRUTIVISMO LÍRICO

Andre Seffrin

Poeta inventor, Davino Ribeiro de Sena alia muito bem ao construtivismo uma disponibilidade lírica. Já foram apontadas certas semelhancas suas com Augusto dos Anjos e João Cabral de Melo Neto, de quem adotou algum vocabulário e procedimento técnico. Pela seriedade de seu projeto e pelo seu temperamento, eu o aproximo ainda de Manuel Bandeira, Jorge de Lima, Joaquim Cardozo e Alberto da Cunha Melo. Como eles, Davino é um lírico e por vezes um elegíaco, atento sempre à arquitetura do poema, tendendo até a um certo hermetismo, à maneira dos três últimos. A poesia social, o memorialismo e o poema narrativo, no caso especial de Davino, complementam o universo mental de quem possivelmente não vê antinomia entre inspiração e construção.

Castelos de Areia (Estação Liberdade, 1991), seu livro de estréia, foi detentor do primeiro lugar na 5a Bienal Nestlé de Literatura. Publicou mais tarde Pescador de Nuvens (Thesaurus, 1996), O Jaguar no Deserto (Bagaco, 1997) e Retrato com Guitarra (Sette Letras, 1997), aos quais vem agora juntar-se Vidro e Ferro, fixando definitivamente seu nome entre os melhores poetas da nova geração.

Davino compõe Vidro e Ferro em quatro partes: "Arquitetura do Eu", "História do Casal", "Arquitetura da História", "História da Arquitetura". Apesar do aparente esquematismo, prevalece no livro o tom coloquial. O autor tem consciência da necessidade do aparato instrumental e domínio técnico, sem se deixar seduzir pelo cerebralismo neoparnasiano que preside grande parte da poesia contemporânea. Ele familiarizou-se com a tradição para manejar seu conhecimento não como um simples verse-maker (na acepção de Mário Faustino), mas como um notável explorador de caminhos. Os ecos de Bandeira e João Cabral, muito presentes, não são apenas intencionais mas programáticos. Nesse sentido, ele não é um continuador ou, como muitos, um diluidor, pois procura fazer uma obra que amplie e redimensione suas modulações a cada momento.

Embora de maneira episódica, o poeta novamente abre o álbum de família em busca do tempo perdido. Na lembranca da figura do pai ou na recordação de objetos e acidentes da infância, ele vai recompondo cenas como quem segue à procura do cisma, da ruptura. São poemas de circunstância, espécie de leitura do avesso, um baú de histórias que ele passa a trabalhar com o apoio de imagens recorrentes como areia, ferro e vidro. Na memória da infância, o espelho da velhice e da morte, o passado "refletido na transparência do vidro". É nesse universo de reflexos e ressonâncias que se desenvolvem os principais núcleos temáticos de toda sua obra.

Nesta forma fixa que parece se adequar aos seus propósitos e que chama de fotoneto, segundo suas próprias palavras uma forma quase "laboratorial", vezenquando vemos luzir como jóia um verso solitário, desprendido do concreto armado do poema - vale citar como exemplos o poder sugestivo de "No travesseiro, alguns fios/ de cabelo ensinam a morrer", e a lapidar lição de paisagem expressionista contida num verso como aquele "O medo infiltrou-se na tarde", condensando toda a atmosfera do poema. Às vezes, ao contrário, fala o poema inteiro, em vibração, espessura e ritmo - "O brasão", "O porco na folhagem", "Paralelismo", "Atavismo", a delícia do "Sarau Parnasiano", "Arte românica" e, pela plasticidade, "Restaurante catalão", entre aqueles que merecem figurar em qualquer antologia da moderna poesia brasileira. Assinale-se ainda que, dispensando quase sempre o adjetivo ornamental, ele o insere como elemento de estrutura. Um entre os tantos recursos de poeta senhor de sua matéria.

Quando afastado da dicção raciocinante e antilírica (João Cabral), o poeta se aproxima de uma face mais emotiva e elegíaca. É o melhor Davino, aquele que podemos identificar na mesma familia espiritual dos já aludidos Jorge de Lima e Joaquim Cardozo, da qual descende também Alberto da Cunha Melo - poetas artífices da palavra encantada.

E em Davino Ribeiro de Sena a palavra se encanta e se ilumina diante do "espelho do passado", diante da realidade mais crua e de seus reflexos que vibram em vidro, em ferro, em tudo. Feche a cortina sobre as horas, diz o poeta, "A eternidade apenas começa".

Rio, março de 1999

Glass and Iron

LYRICAL CONSTRUCTIVISM


Andre Seffrin


Inventive poet, Davino Ribeiro de Sena combines well a constructive mind with a lyrical openness. Poetry critics have noticed some of his similarities with Augusto dos Anjos and João Cabral de Melo Neto, from whom he has adopted some vocabulary and technical procedures. Judging by the seriousness of his project, I would approximate him also of Manuel Bandeira, Jorge de Lima, Joaquim Cardozo and Alberto da Cunha Melo. Like them, Davino is a lyric and sometimes an elegiac, always attentive to the architecture of the poem, even tending to a certain hermetic diction, as in the three last ones. Social poetry, memoirs and narrative poem, in the particular case of Davino, complete the mental universe of someone who possibly does not see antinomy between inspiration and construction.


Sand Castles (Estacao Liberdade, 1991), his debut book, won first prize at the 5th Literary Biannual organized by the Nestle Cultural Foundation. Latter he published Fisher of Clouds (Thesaurus, 1996); The Jaguar in the Desert (Bagaco, 1997) and Portrait with Guitar (Sette Letras, 1997), which now are joined by Glass and Iron, books that launched their author’s name among the best poets of the new generation.


Davino composes Glass and Iron in four pieces: “Architecture of Me”, “History of the Couple”, “Architecture of History” and “History of Architecture”. Despite the apparent schematic of the book, its colloquial tone prevails. The author is aware of the need for instrumental apparatus and technical control, but is not seduced by the Parnassus kind of intellectuality that governs a large portion of contemporary poetry. He familiarized with tradition to maneuver his knowledge not as a mere verse-maker (in Mario Faustino’s concept), but as a notable pathfinder. Echoes of Bandeira and Cabral, very present, are not only intentional, but programmatic. Indeed, he is not a follower or, as many seem to be, a diluter, as he tries to make a kind of poem that expands and restructures its modulations in each moment.


Albeit episodically, the poet opens again the family album in search of the time lost. In the remembrance of objects and accidents of infancy, he recreates scenes as someone looking for the schism or finding the rupture. Those are poems of circumstance, a kind of reading the inside out, as a chest of stories that Davino opens with the help of recurrent images such as sand, iron and glass. If the memory of infancy is the mirror of old age and death, then the past can be “mirrored in the transparency of glass”. It is in this universe of reflections and resonances that he develops the main issues of his work.



In the fixed form that seems to suit his purposes, the one Davino Sena calls photonnet (and according to his own words an almost “laboratorial” form) sometimes we see a lonely verse, shining as a jewel detached from the concrete of the poem. Here it seems worth to mention as examples the suggestive power of “On the pillow, some strands/ of hair teach us to die”, and the polished lesson of expressionism in the landscape, as in a verse such as “fear pervaded the afternoon”, which intensifies the whole atmosphere of the poem. Sometimes, on the contrary, the whole poem speaks with vibration, thickness and rhythm – "Coat of Arms”, “The Boar in the Bush”, “Parallelism”, “Atavism”, the delicious “Parnassian Soirée”, “Romanesque Art” and, for its plasticity, “Catalan Restaurant”, among those that deserve to be included in any anthology of modern Brazilian poetry. I want to point out, moreover, that he dismisses almost always the ornamental adjective, inserting it as an element of structural design. This is one among his many resources of poet in control of his matter.


When the poet is away from the intellectual, anti lyrical (João Cabral) diction, he seems closer to a more sentimental and elegiac face. This is the best Davino, the one we like to include in the same spiritual family as the already mentioned Jorge de Lima and Joaquim Cardozo, from which also descends Alberto da Cunha Melo – all of them artisans of the enchanted word.


And in Davino Ribeiro de Sena the word is lit and enchanted when he faces “the mirror of the past” reflecting the crudest reality and when its reflections vibrate in glass, iron and everything. Close the curtains on the hours, says the poet, “eternity is just beginning”.


Rio, March 1999