HOSPITAIS RECIFENSES
Euclides ainda não sabia da condição doenca, seus ritos e ritmos, ainda não sabia dos hospitais, seus labirintos.
Ouvira falar dos corredores impregnados com éter, das plantas que já foram gente, ouvira falar das plantas embriagadas com éter.
Algum ser etéreo viria ao corredor dos vegetantes? Algum ser etéreo viria para a liturgia dos pacientes?
Nos hospitais do INPS nitidamente a paciência fica mais densa, no paciente que sofre o labirinto doença.
Não é a paciência da aranha que a teia extrai do próprio corpo sucessivamente, de aranha que seja escritor parnasiano.
É antes a paciência do leitor que se deixa enredar na teia a sua frente, nas palavras enredantes de famoso autor.
É antes a paciência do leitor mosca, ou semelhante inseto, que não desgruda de um livro: para tanto, chama o médico.
O médico chega vidreiro como um crítico literário em socorro do paciente que geme na teia de vidro.
Lê sintomas e ausculta poemas, a cada leitura envidracando o paciente com frases inteligentes.
Envidraca algumas fezes com microscópios atordoados pela obsolescência, com gestos embaciados de servente.
O Hospital Pedro II tinha serventes embaciados que de tanto polir doentes absorveram o olhar cansado.
Os estudantes poliam cadáveres, friccionando-os até o vidro lúcido dos mortos que, relidos, sao luzidios.
Os indigentes favelados eram fixados em vidro, arte médica incrustada nos jovens que exercitam memória vitral.
Os estudantes recifenses não se sabiam privilegiados: tratavam manequins de carne e osso capazes de xistossoma e febre.
Ali se estudavam manequins vivos, melhores que os de plástico usados em países ricos onde o indigente é mais raro.
Um indigente favelado que a cobaia foi promovido viu que o hospital antigo tinha o tecido necrosado.
Tinha paredes necrosadas pelo tempo, o vírus lento que nos tijolos se infiltrava por dentro, até no seu cimento.
Diante da situação melhor seria restaurá-lo: injetar-lhe vidro imunizado contra o tempo, vidro de museu.
Em museu restaurado, o hospital poderia ser obsoleto: exibiria com toda a pompa sua venerável sucata.
Singular é a profilaxia no Hospital da Restauração, que resiste ao vírus do tempo já no sobrenome de pia.
O hospital nao tem sucata que exiba como ferro velho (velho, porem digno de constar em museu; ferro, mas histórico).
O ferro de seus instrumentos não enferruja em tom certo: tem sempre o ar desafinado de quem não sabe ser arcaico.
O ferro ali não tem tempo sequer de ser obsoleto: morre sem padecer ferrugem aparafusando os enfermos.
Tuberculosos desnutridos e bêbados atropelados ali chegam em profusão anestesiados ou não.
Na lente do jovem médico a morte é uma recepcionista que acompanha suas vítimas do hospital ao cemitério.
A morte é uma recepcionista de hotel, elegante em vestido negro, sorridente e hiperativa para atrair novos clientes.
Na ambulância, doente é turista que canta um maracatu de adeus: chô vai, chô vai! entoa a sirene; eh vou, eh vou! responde o doente.
Embora contra o turismo levantem-se os enfermeiros, a morte ali se multiplica oferecendo paisagens líricas.
Contra a propaganda da morte nos barracos sem higiene há que vacinar o indigente com espertos linfócitos mísseis.
O Instituto Materno-Infantil (cujo nome de guerra é IMIP) dispõe de teleguiados mísseis mais velozes que antibióticos.
Não consegue o vírus morte com seus métodos pervertidos aproximar-se dos meninos sem ser alvo de tais mísseis.
Médicos de bem com a vida antecipando-se à morte fazem o anêmico ser forte sem hipérboles literárias.
Sem hipérboles pediátricas médicos de bem com a vida ali desenvolvem a areia da juventude sadia.
De areia erguem fortaleza (praieiro forte recifense) capaz de fortalecer gente antes da condição doença.
Fortalecer antes, em bebê de areia, para que não rache como o vidro contra o vento nem enferruje com o tempo.
O hospital produz meninos de areia: máquinas imunes às infeccões do vidro e à melancólica ferrugem.
O IMIP fez Euclides imune como um poeta fez seu verso de areia, nele injetando ferro e vidro, material para clones.
Como um poeta fez castelos de areia, com semipermeável memória, sem desmoroná-los em verso livre e adoentado.
No poeta vibravam castelos de areia: sombrios hospitais na lembranca, sob ondas de medo que fazem penar os anjos.
Os hospitais não desmoronam porque fazem clones: onda enxuta no papel que aguça o medo sob o verso que a sombra ausculta. | |